Bem, em primeiro lugar acho importante ressaltar que esse é apenas um projeto de livro e a história não está totalmente estabelecida, o que significa que muitas coisas podem mudar ou até que posso, inclusive, não dar continuidade ao enredo. Ainda assim é algo que espero ter força de vontade para levar para frente e concluir, porque tenho um apanhado de idéias que a mim pareceriam muito legais se colocadas no papel e envolvidas em uma trama. Sendo assim, deixo aqui o primeiro capítulo da história, o qual, embora não traga muitas informações, contém uma breve apresentação do modelo da narrativa e da minha forma de contar os fatos (ou da forma de Peter, dependendo do ponto de vista).
Capítulo 1
Os meus dois "primeiro dia"
Pra falar a verdade, não era exatamente uma sensação estranha. Já havia me acostumado a ela, só não esperava que viesse com tanta força dessa vez.
Os segundos pareciam se arrastar, como se não estivessem mais passando; era difícil não pensar que o tempo talvez tivesse parado. Mas o lógico era supor que não, pois se isso tivesse acontecido provavelmente aquela cena estaria congelada, e não se desenrolando na minha frente. Não podia mais suportar ficar parado, apenas assistindo tudo aquilo como se fosse um espectador incapaz diante de um filme que por ele não fora produzido. Precisava fazer alguma coisa, precisava ajudar, mover o que pudesse para transformar aquilo. E assim o fiz, mas mal sabia eu que aquela decisão mudaria minha vida inteira dali em diante. E o pior de tudo: mudaria também todo o meu passado e de mais algumas pessoas!
•••
- Peter Leon Julius, faça o favor de levantar dessa cama nesse exato instante!
Aquela voz chegou aos meus ouvidos com uma força absurda, como se estivesse saindo de algum imenso alto-faltante colocado no último volume. Abri meus olhos lentamente e procurei enxergar algo, mas era inútil. Ainda meio zonzo, sentei-me em minha cama e vasculhei meu quarto com a visão embaçada, tentando convencer a mim mesmo de que agora tudo era real. Fora apenas um sonho, nada mais que um sonho. Tão estranho quanto todos os outros que já tive, mas apenas isso: um sonho.
- Você ouviu o que eu estou dizendo? É melhor que você não me faça subir aí ou estará em sérios problemas, garoto!
É, agora sim eu havia me dado conta de que aquilo era a realidade. Aquela voz era inconfundível: só podia ser aquela velha maluca novamente. Será que ela não se cansava de me atordoar? Havia tantas coisas que uma mulher viúva, aposentada e com uma renda razoável poderia fazer! Tenho certeza que viver para atazanar um garoto de dezesseis anos, iniciando o terceiro ano do ensino médio, não estava entre uma delas. Mas faltava pouco. Em breve, dentro de pouco mais de um ano, eu estaria fora daquele lugar! Nunca mais teria de olhar para aquela cara enrugada todas as manhãs e me perguntar, ironicamente, porque os céus foram tão generosos em mandar-me aquela criatura rabugenta.
- Eu estou subindo agora!
- Não precisa! – gritei eu, já irritado com a situação – Já levantei e estou descendo!
- É bom mesmo! – retrucou ela, depois de alguns breves segundos.
O silêncio tomou conta do lugar. Só pude ouvir alguns passos recuando nos primeiros degraus da escada e murmúrios baixos, mas ainda assim audíveis. Percebi então que estava sem óculos (o que daria pra notar pela forma como a minha toalha verde pendurada lembrava muito a moça que fazia a previsão do tempo no Jornal da Noite). Tateando a cômoda os senti. Levantei ligeiramente a borda da minha camiseta e limpei as lentes. Coloquei-os então e o quarto se fez compreensível instantaneamente. Sem mais delongas abri minhas gavetas, procurando o lugar onde estavam meus uniformes.
É, realmente não sei que indivíduo teve a idéia de usar cores tão feias num uniforme. Se queriam envergonhar os alunos, conseguiram. Até aquelas frases de caminhoneiro, como “Se tamanho fosse documento, o elefante seria dono do circo” ou “Nas curvas do teu corpo capotei meu coração” teriam caído melhor numa camiseta. Pelo menos eu me sentiria melhor se andasse com algo assim escrito em minha roupa no lugar de ter que aturar aquele marrom e amarelo. Duas cores horríveis e que, ao meu ver, não combinavam nem um pouco. Se o faziam, quem planejou aquilo realmente não acertou nas tonalidades.
Os furos pequenos espalhados pela camiseta eram visíveis a quem se aproximasse dois metros de mim. Mas aquela, felizmente (ou talvez não), era a melhor das outras três, que conseguiam ser até mais feias por estarem tão velhas. A calça também causava espanto em qualquer um que tivesse bom senso. Afinal, que ser humano em plena sanidade mental acharia que uma camiseta como aquela combinaria com uma calça azul índigo?
Mas eu não podia fazer nada a respeito, até porque já tivera dois anos pra me convencer disso. Só queria pensar que faltava apenas um terço de tudo aquilo. Era pouco e iria passar rápido. Depois dali pensaria no que fazer da minha vida. Vesti minha roupa, escovei os dentes, arrumei a cama, peguei a mochila e desci as escadas. Ao alcançar o corredor, chegando perto da porta, na esperança de que ela não me visse, uma voz vindo de trás se dirigiu a mim:
-Até que enfim, hein?! Achei que ia bancar o vagabundo e ficar dormindo o resto do dia.
Eu parei por alguns segundos, ainda sem olhar.
- Se eu durmo o resto do dia é pra não ter que ouvir a sua voz – murmurei baixinho, sem me dar conta de que não estava somente pensando.
- O que você acabou de dizer, garoto?
- Nada! Só estava me lembrando de que preciso fazer meu dever sobre a Foz! Foz do Iguaçu, sabe?! – falei, deixando um leve sorriso perpassar meu rosto.
- Ah, bom mesmo! Lembre-se que eu sou sua mãe e você me deve respeito.
Não falei nada, apenas assenti com a cabeça e saí andando em direção à porta.
- Não vai comer? Vai pra escola de barriga vazia mesmo?
- Não estou com fome. E, além do mais, estou ligeiramente atrasado. Se eu demorar demais perderei a aula de História.
- Ah, as aulas de História. Não sei que grande paixão você vê nisso. Acha que vai ser o que? O novo Pedro Álvares Cabral? Acha que vai descobrir um continente ou qualquer coisa assim? – disse ela, no tom mais sarcástico que conseguiu.
Sarcasmo por sarcasmo, eu respondi:
- Ah, não tenho essa pretensão. –falei lentamente - Perdoe-me, mas acho que não darei tamanho reconhecimento à família Leon Julius. Seria preciso alguém com muito mais habilidade que eu para realizar tão esplêndida coisa. E não falo só de inteligência, até porque um pouco de estudo te mostraria que o último continente a ser descoberto já o foi. E, por algum acaso, se chama Oceania. Então, a menos que você pretenda criar outro mundo, onde também haja porções de terra cercadas por mar, e colocar-me nele, creio que não poderei lhe ajudar com o seu belíssimo e admirável sonho de ter um filho descobridor!
Nem olhei para trás para ver a cara que ela fazia, pois creio que se o fizesse sairia de casa numa ambulância. E não porque ela me atacaria, mas certamente a feiúra de sua expressão já seria suficiente pra causar um ataque cardíaco até nos corações mais saudáveis. Bati a porta e saí andando o mais rápido que pude. A rua estava molhada, por isso mesmo com pressa tomei cuidado para não levar um escorregão.
A escola ficava a apenas quatro quadras da minha casa, o que não me dava muito tempo pra pensar em paz, sem a interferência de minha mãe ou daqueles que, supostamente, deveriam ser meus colegas de classe. Se digo supostamente é porque, de fato, não conseguia nem sequer chamar qualquer pessoa naquela sala de colega. Pareciam mais um bando de animais e eu, até onde me lembro, nunca recebi qualquer aula que me ensinasse ao menos níveis básicos de comunicação com qualquer outra forma de vida que não fosse humana. Não que eu não me pegasse às vezes conversando com cachorros, gatos ou até mesmo pássaros. Mas sentia que eles entendiam muito melhor o que eu dizia que qualquer aluno naquela escola.
Enquanto caminhava lançava olhares constantes para o céu. O dia estava nublado e nuvens carregadas se acumulavam. Estavam pesadas e a tempestade que se aproximava parecia não ser muito amigável, por assim dizer. Mas eu não ligava muito, pra ser sincero. Gostava de chuva, de tempos fechados. O Sol não era lá meu grande companheiro. E era até engraçado ver como naquele dia em especial os formatos das nuvens lembravam o rosto de um senhor beirando a casa dos setenta e que, pela sua “expressão” (se é que posso dizer isso de um aglomerado de nuvens), comera alguma coisa que não lhe fizera bem. O estranho para mim foi que o vento não correspondia à paisagem; estava fraco e tudo que podia sentir era uma leve brisa, semelhante àquelas de dias de verão em campos abertos.
Um estrondo. Um trovão. Algumas gotas tocaram meus braços. Se eu não quisesse chegar à escola todo molhado era melhor que acelerasse meu caminhar. Tentando andar mais rápido e ao mesmo tempo não parecer um completo desengonçado ao desviar das poças que haviam se formado pela chuva recente, passei pelas três quadras que ainda faltavam. Dezenas de estudantes com roupas que seriam tão feias quanto as minhas se não estivessem em melhor estado caminhavam em direção ao mesmo lugar.
Escola Estadual Gilberto Mesquita de Arantes. O último lugar no mundo onde eu gostaria de estar naquele dia. Mas, repeti para mim em meus pensamentos, faltava só um ano. Um ano para estar fora daquilo e me ver livre daqueles pirralhos – que na verdade eram, em sua maioria, da mesma idade que eu.
Adentrei os portões e imediatamente a diretora veio falar comigo, como se tivesse surgido do nada ou, talvez, tivesse ficado ali me esperando.
- Bom dia, Peter! Espero que tenha aproveitado bem as suas férias – disse ela com um sorriso forçadamente educado.
- B-bom dia, Srª Oliveira – respondi ainda meio confuso.
Abordar-me pela manhã, enquanto eu estava absorto em meus pensamentos, não era a coisa mais inteligente a se fazer. Não porque eu pudesse reagir com algum tipo de estupidez, mas pelo fato de que poderia não falar coisa com coisa.
- Bom, eu só queria chamar a atenção para um pequeno detalhe. Acho que todos nós estamos perfeitamente cientes dos eventos ocorridos no fim do ano passado, certo?
Aquilo era uma claramente pergunta retórica, por isso apenas assenti com a cabeça.
- E, igualmente, creio eu, todos desejamos que eles realmente não se repitam, correto?
Repeti o movimento com a cabeça, sem emitir qualquer som.
- Correto? – perguntou ela novamente, aumentando levemente o tom de sua voz e fazendo-se um pouco mais incisiva.
- Sim, correto! – falei rapidamente, evitando que nossos olhares se encontrassem.
Ela não era uma megera, como pode estar parecendo. Contudo, sempre prezou muito pelo nome do colégio e pela boa reputação e sei até onde poderia chegar para impedir que a instituição pudesse se tornar mal falada. Bom, ela sem dúvida havia falhado em sua missão há alguns meses, uma vez que todos os jornais do estado haviam noticiado o ocorrido – de forma ruim, claro, exceto por um deles. Era o tipo de matéria na qual qualquer jornalista gostaria de meter o nariz. A história que só tem graça se cada um contar sua própria versão dos fatos. Talvez ela não se importasse muito comigo, mas tive vontade de dizer que a escola sem dúvida tinha sofrido menos que eu.
- Então – falou ela com a mão direita repousando em meu ombro – acho que agora era melhor que você fosse para sua sala. Sei o quanto é apaixonado pelas aulas de História e creio que não vai querer perder um minuto sequer dela, certo?
A expressão em seu rosto mudara completamente. Parecia agora uma mulher dócil e extremamente prestativa, pronta para oferecer qualquer serviço aos seus alunos, embora ainda desse pra notar a falsidade naquilo tudo.
- Sim, sim. É melhor eu me apressar!
Esboçando um sorriso de canto saí andando. Realmente, ela era boa em todos os outros aspectos. Só dava bola demais para algo com o que eu não me importava: o que as pessoas pensavam. Só que às vezes eu achava que as pessoas sim se incomodavam com o que eu pensava, principalmente o grupinho que incluía Eduardo, Douglas, Tiago e Vinicius. E claro que, como era de se esperar, eles tinham um líder, o pior e mais inteligente deles...err, corrigindo: menos burro. Leandro era o seu nome e isso não era algo que só eu soubesse. Esses cinco garotos, juntos, faziam o tipo “grupo manda-chuva de escolas mostradas em filmes americanos”. Aquilo nunca me intimidou, mas, sem dúvida alguma, me irritava demais.
- E aí, leãozinho, andou se esquecendo que tem que pagar a tarifa da semana inteira adiantada no primeiro dia de aula?
Parei a poucos metros do primeiro lance de escadas que levava do pátio ao primeiro andar. Aquela voz. Só podia ser ele. Com o aviso nada amistoso da Srª Oliveira eu até tinha me esquecido daquela baboseira de “Taxa da Paz”.
É, meus caros, pode parecer ridículo, mas um jovem de dezoito anos realmente tinha poder naquela escola. O pai de Leandro era um jornalista muito influente, redator-chefe do jornal mais famoso do estado de São Paulo. Como sempre recebia suborno para esconder as calamidades que o governo fazia tornara-se um homem inescrupuloso. E seu filho não era nada diferente. A diretora fizera um acordo com ele de, em troca da retenção de qualquer conteúdo que pudesse prejudicar a escola, liberar o garoto de todo castigo que seu mau comportamento pudesse acarretar. Teoricamente, só não poderia atingir a integridade física dos alunos dentro da escola. Contanto que não o fizesse, advertências e suspensões jamais seriam destinadas a ele, sob nenhuma circunstância. Seus comparsas, através de um pedido de seu pai, (algo mais parecido com uma ordem) também estavam debaixo da mesma proteção.
- Nossa! É incrível como você já teve quase dois anos para pensar em algo melhor e ainda continua a me chamar por esse apelido ridículo – falei, girando meu corpo para o lado e encarando-o.
Leandro não gostava de ser contrariado e isso poderia ser facilmente percebido pela forma como sua expressão se contorcia agora.
- Então, - continuei – se você não se importa, eu tenho uma aula pra assistir agora. Não tenho tempo pra perder com você. E, respondendo à sua pergunta, não trouxe. Não me lembrei da porcaria do seu dinheiro.
Eu não era idiota, embora não fosse medroso. Sabia que tinha que pagar a tal da taxa se quisesse continuar vivo. Como já expliquei, não adiantava fazer qualquer reclamação à diretoria ou mesmo expor o problema para a mídia, uma vez que seriam barrados em ambos. Contar a minha mãe o que acontecia também não era saída alguma. Acho que ela preferiria me ver apanhando sem que tivesse que responder ao Conselho Tutelar por isso.
- Ah, Peter! – quando ele me chamava pelo nome é porque estava realmente bravo – É melhor você não mexer com fogo. As poucas vezes que tentamos lhe dar uma lição você se safou. Não sei como, mas conseguiu. Aqui dentro da escola você sabe que não podemos fazer nada. Mas fora, a história seria outra. O problema é que – e nesse momento a voz dele foi se abaixando, quase virando um sussurro – não sei o que acontece com você. Simplesmente não conseguimos fazer contigo o que fazemos com os outros.
- E isso te assusta, não?! – falei eu, tentando não provocá-lo e ao mesmo tempo deixá-lo acuado.
Ele parou por alguns segundos, fitando meus olhos com uma raiva que transbordava e podia ser sentida a quilômetros.
- Não, isso não me assusta! – seu tom era forte, mas ainda assim sabia que estava mentindo – Mas eu não sou nenhum idiota pra me meter com você depois do que aconteceu ao Julio, Roberto e Kleber. Não sei o que você tem, mas já estaria morto se não fosse por isso.
Seus punhos se fecharam e eu pude sentir a sua vontade de amaciar minha cara como uma massa de pizza.
- Bom, você é inteligente. Isso é algo que respeito. Quanto ao seu dinheiro, eu o trarei amanhã e espero que se contente com isso!
E, ao falar isso, saí caminhando e subindo as escadas. Eu era o único naquela escola que tinha coragem de enfrentá-lo daquela forma. Não que outros já não tivessem tentado, mas depois de fazê-lo tiveram que embarcar numa viagem com estadia de uma semana em algum hospital.
De alguma forma estranha, aquilo nunca acontecera comigo. Lembrei-me dos três ex-capangas de Leandro que já haviam se arriscado a dar-me uma surra. Nenhum dos três estava vivo para se vangloriar de seu feito. Isso pode parecer cruel e, inclusive, devo admitir que me sinto muito mal com a situação. Mas não fora escolha minha. Eu simplesmente levava alguns socos no estômago e, por algum motivo desconhecido, eles paravam e saíam andando, ignorando qualquer som, o que incluía os urros do grupo para que retornassem. Andavam em direção ao horizonte e desapareciam, sendo encontrados mortos em algum lugar no outro dia. A última morte ocorrera no fim do ano passado e era justamente o evento sobre o qual a diretora me alertara logo na entrada.
Alguns podem estar se perguntando “Ué, mas ele podia não pagar a taxa então. Afinal, todo mundo que ousasse tocá-lo não tinha um fim muito bom”. É, eu também já quis pensar assim. Mas prefiro não contar sempre com a sorte, coisa que eu nem sequer acredito. Não sei nem se posso chamar isso de sorte, porque três caras estavam mortos e eu sentia como se isso fosse minha culpa, mesmo que não tivesse feito absolutamente nada. Além de não me sentir à vontade com a idéia de ser espancado, não precisava do peso de mais um valentão morto na minha consciência. Três já eram mais que o bastante pra me deixar mal.
Cheguei à porta da sala e entrei. Todos os alunos estavam conversando, provavelmente matando a saudade. A algazarra poderia facilmente ser confundida com um enterro se comparada ao que acontecia durante o período dos outros professores. Mas o senhor Roger não deixava barato. Ele sabia como fazer todos obedecerem e manter a sala em silêncio durante suas aulas. Só havia permitido aquele barulho até agora porque também era extremamente justo, afinal, ainda faltava, de acordo com o relógio da sala, um minuto para o início da aula. Eu o olhei e ele levantou os olhos de seu livro, retribuindo o meu olhar. Pensei ter visto um pequeno sorriso surgir entre seus lábios, mas achei que estava vendo coisas. Ele não sorria. Pelo menos eu nunca o tinha visto fazer isso.
Sentei-me, como de costume, na carteira em frente à mesa dele e coloquei minha mochila no chão. A sala tinha o mesmo aspecto de sempre; a mesma porta velha marrom, a mesma cor branca (quase cinza de tão suja) nas paredes e as mesmas janelas. Bom, exceto pelo vidro que ano passado fora quebrado e agora, pelo visto, estava reposto. A lousa estava limpa, apenas com algumas marcas de giz e arranhões daquele tipo que todos sabem que ficarão lá eternamente. Era isso. Seria mais um ano igual aos outros dois. Perfeitamente comum e entediante.
O ponteiro maior chegou ao seu lugar. Sete horas em ponto. O professor colocou um marcador de páginas em seu livro para saber onde parara leitura e o fechou. Levantou-se de sua mesa, inspirou profundamente e olhou para todos nós com um ar de esperança, mas também de tristeza. Eu sabia, de alguma forma, o que ele estava pensando e devia concordar que sentia o mesmo, embora não entendesse o porquê de compartilharmos aquele sentimento. Quero dizer, ele era um professor, deveria sentir isso naturalmente. Mas eu era apenas um aluno. Talvez aquilo não fosse uma sensação propriamente esperada de mim.
Quando ele abriu a boca para falar a sala inteira calou-se. Mas eu realmente fiquei em dúvida se o fizeram porque notaram que ele ia falar, pois seus olhares e, inclusive, suas cabeças, estavam virados em direção à porta. Ele, percebendo o que acontecera, também mudou a direção de seu olhar. Eu fiz o mesmo.
- Com licença, é aqui que é o... – ela abriu um papel e o olhou, parecendo ter certa dificuldade para entender a letra – terceiro D?
- Sim, senhora – respondeu o professor com serenidade – aqui mesmo. Você deve ser a aluna nova, certo?
- Sim, sou eu. – ela falou com uma voz tímida.
- Queira então, por gentileza, entrar e sentar-se naquela cadeira que está vazia.
Ele apontou para a carteira ao meu lado. Ela passou pela porta, ainda com a cabeça meio baixa, e sentou-se no lugar que lhe fora indicado. Todos os olhares a seguiram. E não sei explicar se isso aconteceu pelo fato de ser simplesmente uma aluna nova ou pela sua aparência. Talvez por ambos. Ela não era o tipo de garota que se via todos os dias. Pra falar a verdade, não era parecida com qualquer menina que eu já tivesse visto em toda a minha vida.
Ao se sentar as pontas dos seus cabelos tocaram a superfície da mesa. Eram de um negro profundo e um liso impecável. Parecia que não havia um fio fora do lugar, inclusive os de sua franja, como se tivessem sido perfeitamente alinhados. Talvez isso pudesse ser explicado por sua etnia. Ela certamente era asiática, provavelmente japonesa. Suas roupas eram extremamente peculiares; vestia uma camiseta rosa desbotada listrada de preto com mangas desfiadas e coisas escritas pelas laterais, uma saia de cor preta com algumas correntes que quase atingia os seus joelhos, um calçado preto que parecia ter sido roubado de uma boneca gigante e meias-arrastão que subiam desde seus pés até sumirem dentro de sua saia. A maquiagem que usava era forte, ressaltando o negro de seus olhos em contraste com sua pele clara. Usava ainda uma tiara preta com bolinhas brancas que mantinha seu cabelo atrás das orelhas e mostrava suas orelhas adornadas com alargadores rosa-escuros. É, ela era uma visão bem atípica.
- Senhorita Mizuki, creio que já lhe explicaram sobre o nosso regime escolar. – falou o senhor Roger. Ele decididamente não parecia se importar com o visual estranho da menina.
Ela assentiu rapidamente com a cabeça, mantendo o olhar fixo nele.
- Mas avalio que seja de grande importância explicar mais algumas coisas e relembrá-la de outras que possam ter sido esquecidas.
E nesse momento ele começou a falar sobre respeito aos colegas, aos professores, sobre o empenho que deveríamos ter nas matérias e todas aquelas coisas que compõem o que eu gostava de chamar de Caderno de Regras Para Evitar Conflitos Armados e Uma Guerra Mundial Entre Estudantes e Professores. Ou, se você preferir, pode falar apenas a abreviação: CRPECAUGMEEP.
Eu, enquanto isso, não conseguia desviar minha atenção dela. Não sei se era por causa das roupas ou de todo o conjunto, mas ela me despertara completamente. Não sei no que estava pensando. Nem sei dizer se estava pensando em algo e não apenas a observando com a mente vazia. Sei apenas que quando dei por mim o professor já havia iniciado o seu discurso retrospectivo e falava agora sobre o que aprenderíamos nesse ano. Ela olhava para mim com espanto e eu percebi então que deveria estar encarando-a com a expressão mais medonha possível ou até babando, o que seria uma péssima primeira impressão para se passar a alguém. Como se tivesse levado um susto, desviei meu olhar e abri minha mochila, colocando o meu caderno sobre a mesa e preparando minha caneta para iniciar as anotações.
O professor falava sobre o início da expansão marítima européia, e, naquele momento, focava-se na chegada de Cristóvão Colombo à América em 1492. Eu sempre prestei muita atenção a cada palavra que aquele homem dizia, mas naquele dia não conseguia fazê-lo. Só pensava na garota e lançava-lhe olhares furtivos para ver o que fazia. Não havia sentido atração por ela, ainda que não pudesse negar sua beleza. Era um sentimento esquisito. Não só o seu estilo havia me impressionado. Havia algo além e eu não sabia explicar o que era. Uma sensação de que precisava conhecê-la, embora talvez já a conhecesse mesmo sem saber disso.
A aula se passou como se tivesse durado 50 segundos ao invés de minutos. Só lembrava-me de palavras como “chegou”, “não sabia”, “América”, “expedição”, o que, pra mim, não fazia um discurso compreensível. A garota, por outro lado, parecia ter feito todo o meu trabalho: olhava agora para duas páginas escritas frente e verso com uma caligrafia bonita, mas que demonstrava claramente a pressa de quem a escreveu.
As outras aulas se passaram tão rapidamente quanto a primeira e o dia na escola acabou rápido. Sim, tínhamos intervalo, mas não naquele dia, pois não teríamos as duas últimas aulas já que os nossos ilustres professores de Matemática e Química haviam faltado. Uma coisa: eu detesto Física. Sempre detestei e nada nesse mundo deve ser capaz de fazer com que eu me afeiçoe a essa matéria. As aulas sempre passaram se arrastando e eu detestava ver aquele monte de fórmulas que não me serviriam para absolutamente nada futuramente. Mas a dobradinha daquela segunda tinha sido uma exceção. Como eu disse, o dia realmente acabara rápido. Todos saíram da sala, exceto por Mizuki, que ficou para falar com o professor. O que quer que fosse, não pude ouvir por conta da barulheira dos outros alunos. Fui ao banheiro após retirar-me da sala, dei uma ajeitada no cabelo e desci as escadas.
Bom, podia até não saber qual era o assunto que uma aluna nova iria querer tratar com um de nossos piores professores (o de Física, claro), mas certamente foi algo extremamente rápido, pois a vi caminhando à minha frente logo quando cheguei ao pátio e me dirigi aos portões de saída. Ouvi então, para meu desgosto, uma voz familiar vindo em minha direção. Bem, não exatamente em minha direção, mas na direção dela. Leandro, pelo visto, queria dar as boas-vindas à garota nova.
- E aí, Mikizukizi – falou ele em tom de deboche – O que te trás da sua terra de japorongas para esse belo lugar?
Eu parei, embora nenhum dos garotos do grupo parecesse ter me notado. Mizuki estava de costas para mim, o que me impedia de ver sua expressão, apesar de poder jurar que sabia como ela reagiria.
- Ah, é bom saber que o Japão é bem conhecido por aqui – respondeu ela de forma pacífica.
- Não seja tonta, garota. Não é porque você tem um cabelinho escorrido e usa essas roupas de revoltada que me assusta.
E nesse momento ele se aproximou dela, levantando o dedo para o seu rosto e continuando a falar.
- Escute bem minhas palavras. Não gosto de gente igual a você! – o tom dele se tornara claramente mais agressivo e tive medo que ele pudesse fazer alguma coisa – A “Taxa da Paz” serve pra você também e é bom que esteja com ela amanhã na entrada, senão...
- Senão o que? – ela cruzou os braços e se aproximou dele, ficando a poucos centímetros de seu rosto – Vai me bater e usar seu papaizinho para esconder que agrediu uma garota? Pois vá em frente. Você não é o único que tem contatos.
A garota tímida que se mostrara logo no início da primeira aula havia sumido. Parecia realmente outra pessoa no corpo dela. De repente, como se as palavras tivessem chegado até mim em um tempo mais longo que o normal, eu pensei: como ela sabia do pai dele? Quer dizer, ela era nova aqui (provavelmente nova no país). Como tinha esse tipo de informação? Ela então sussurrou coisas que eu não consegui ouvir, mas, segundos depois, concluí que deveriam ser horripilantes, pois o grupo a deixara em paz e saíra correndo, todos com uma expressão de pavor. Devo admitir: aquilo me deixou com muito medo. E o pior de tudo veio depois.
- Peter? O que foi? Por que está parado olhando para mim?
Meu coração congelou naquele exato momento. Meu nome, como ela sabia meu nome? Não tínhamos mais chamada, pois os professores haviam decorado nossos nomes e sabiam quem éramos. Não tínhamos carômetro. Ela não havia falado com ninguém o dia todo, pois eu fiquei de olho durante as três aulas (sim, eu assumo que não consegui desviar meus pensamentos dela o dia inteiro). Então como? Será que, de alguma forma absurdamente incrível, ela tinha perguntando a alguém sem que eu tivesse visto ou então falara com o professor depois da aula apenas para isso? Mas se fora isso, por quê? Por que ela iria querer saber meu nome?
- Peter? – ela repetiu, tentando encontrar meus olhos que pareciam estar perdidos.
- O-o-oi! – finalmente a palavra saiu – Oi, Mizu...
- Mizuki!
- Isso mesmo! Mizuki! Oi!
Eu estava realmente nervoso e achei que poderia estar tremendo mais que uma ovelha recém-tosqueada jogada no meio do Alasca.
- Aqueles caras são realmente uns idiotas. Não sei por que ainda existem pessoas assim!
Ela falava com uma indignação que me admirava. Lembrava-me alguém...mas quem? Antes que eu pudesse chegar à conclusão vi-me forçado a responder algo.
- Sim, sim. São realmente estúpidos.
- Não precisa ficar nervoso. Não vou fazer com você o mesmo que fiz com eles.
Ao dizer isso o sorriso dela se abriu de uma forma que pareceria extremamente maléfica se não fosse tão infantil e surpreendentemente inocente. Pensei em perguntar o que ela fizera a eles, mas tive medo da resposta e pouco tempo para colocar as palavras numa frase que fizesse sentido. Ela se aproximou mais de mim.
- Sei que já sabe quem eu sou, mas isso não é o bastante – aquilo, não sabia por qual razão, soara ambíguo – Mizuki Takashi Kyouda, prazer!
Estendeu então sua mão e a deixou ali parada, por alguns segundos, esperando uma reação minha. Meus pensamentos estavam a mil e a única coisa que consegui fazer foi apertar-lhe a mão e dizer:
- Peter!
- Peter...
- Peter Leon Julius!
- Prazer em conhecê-lo então, senhor Julius – disse ela com um sorriso no rosto enquanto nossas mãos permaneciam dadas.
Eu então me lembrei com quem ela se parecia em sua indignação e ousadia: comigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário